*por Luiz Felipe de Alencastro
Colunista do UOL Notícias
Nos começos dos anos 1990, quando as instituições da União Europeia (UE) ganharam corpo e a URSS desabou, pondo um término à Guerra Fria, um grande jornalista francês, André Fontaine, editorialista do "Le Monde", sentenciou : a paz na Europa vai diminuir a hegemonia dos governos centrais e ressuscitar as fronteiras étnicas no interior dos velhos Estados europeus.
Naquela altura, a Iugoslávia já se despedaçava num sangrento conflito inter-étnico. Mas a Iugoslávia era um país artificial, nascido em 1918, depois de um desenho territorial mal ajambrado feita pelas potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial. Não se tratava, absolutamente, de "um velho Estado europeu".
André Fontaine pensava na Espanha, onde pipocava a revolta no país basco e o descontamento na Catalunha, no norte da Itália, onde existem movimentos regionalistas dissidentes e, sobretudo, na Bélgica, onde sua previsão parece estar perto de se realizar.
De fato, na semana passada, o país completou 13 meses sem governo efetivo, na esteira de uma crise política que se arrasta desde 2007. O motivo do impasse é estrutural e parece não ter mais conserto : o belgas do norte, que falam flamengo (derivado do holandês), tem mais poder econômico e formam 58% da população do país, não querem mais viver junto com os belgas do sul, que falam francês, e são mais frágeis economicamente.
Desde 1830, as duas regiões estão amarradas em torno da monarquia parlamentar sediada em Bruxelas. O país se manteve razoavelmente unido -- apesar das querelas linguísticas que permeavam o seu ensino público --, até os anos 1960. A partir daí a unidade nacional começou a enfraquecer. Primeiro, a Bélgica teve que encarar a catastrófica independência do Burundi, do Ruanda e, sobretudo, do Congo-Kinshasa, suas antigas colônias.
Será que o colonialismo ajudou a Bélgica a manter sua unidade nacional? Esta era a opinião de Joseph Conrad que, na fase mais sangrenta do saque belga no Congo, numa passagem excluída da versão definitiva de sua admirável novela "Coração das Trevas" (1902), definia a Bélgica como um país meio troncho, governado por um "rei de terceira categoria" (Leopoldo 2º) que procurava obter na pilhagem do Congo a importância política de que carecia na política europeia. De todo modo, o final da exploração colonial belga na África coincidiu com o aumento das divisões internas e com o declínio internacional do país.
Paralelamente, a região francófona, cuja economia repousava sobre atividades oriundas da primeira revolução industrial (metalurgia, siderurgia, minas de carvão) começou a ser sobrepujada pela economia flamenga, muito mais dinâmica. Tirando as conclusões destas diferenças culturais e econômicas, o Parlamento belga instaura o regime federalista em 1993. Apresentada como uma solução para preservar a unidade nacional, a autonomia da regiões acabou precipitando o separatismo flamengo.
Atualmente, a Bélgica atravessa uma crise política que pode desembocar numa divisão de seu território. O maior empecilho à sua divisão é o estatuto particular da região de Bruxelas. Além de sediar as instituições europeias, é também a única região bilíngue do país. Na eventualidade de uma divisão do território de que lado ficaria Bruxelas, a jóia da coroa belga?
Os outros países europeus também farão o que puderem para evitar a secessão flamenga por uma razão simples : embora de maneira menos aguda, o separatismo também ameaça a unidade da Espanha, da Itália e do Reino Unido.
No final das contas, a crise da identidade nacional belga mostra que os problemas atuais da Europa são também políticos, e não se resumem à crise do euro ou ao eventual calote da Grécia e de Portugal.
Fonte: UOL Notícias
Nenhum comentário:
Postar um comentário